Oi, pessoa, tudo bem?
eu comecei 2025 perto do mar, com uma bolsa cheia de livros, minha rede e uma vontade de ler mais ficção e escrever mais cartinhas. No entanto, percebi como o substack começou a me encher de e-mails e recomendações parar abrir assinaturas pagas e produzir material exclusivo e tudo isso foi me dando uma gastura terrível.
E abri as leituras do ano novo com livros que me deram muita vontade de conversar. No entanto, entre o incômodo de perceber como o site tenta impor um ritmo de produção muito distante do meu e a informação de que o dono do substack, tal qual o Zuckerberck e Musk, repete a falácia de liberdade de expressão para garantir a circulação de mentiras e de discurso de ódio na rede sem responsabilizar de usuários, me deu preguiça. Enquanto não sei mantenho o substack, se vou atrás de outra plataforma de newsletter, vamos aos assuntos importantes.
Abri inscrições para uma oficina de escrita que começa em abril. Criei um formulário para reunir os contatos das pessoas interessadas e com um enquete para decidir se as aulas serão nas quartas ou quintas à noite.
A ideia é reunir um grupo no google meet, ler poemas e fazer alguns exercícios. A ideia é escolher temas banais para servir de disparadores para os poemas. A questão não é do que vamos falar, mas como. Se Angélica Freitas escreve sobre suas calças jeans, também podemos observar objetos, plantas, memes, memórias e fazer com que o poema aconteça.
Não é preciso se considerar poeta, só estar afim de escrever, ouvir, partilhar. Os seis encontros não são gravados, pois as pessoas às vezes precisam de um espaço seguro para falar da sua relação com a escrita. É importante que a galera se sinta confortável para ler seus poemas sem a preocupação de que uma gravação poderia circular por aí. Então, a magia acontece de acordo com o grupo que se forma, a empolgação que vai rolando durante os encontros. Caso você se interesse, clique no forms e veja os valores e horários, caso ainda tenha dúvidas, pode responder a essa newsletter com suas perguntas.
Abrir uma oficina é sempre uma mistura de friozinho na barriga e uma agitação boa de firmar um compromisso com a leitura e a escrita que não são para pagar boletos. Separar bibliografia, pensar em exercícios, comentar os poemas. Acompanhar os processos dos outros, de alguma forma, me ajuda pensar no que estou escrevendo ou querendo escrever, então, abrir a turma também é me abrir para o imprevisível.
Mas vamos a dois livros que animaram recentemente:
Eu esperava pelo romance da Amara Moira desde que a ouvi ler a cena de abertura de Neca pela primeira vez. Tudo começa com uma travesti contando os pedidos absurdos de um cliente e, entre o espanto, a repulsa e o deboche, ela começa a falar das próprias preferências no sexo. A conversa mistura português e pajubá, e os leitores podem simplesmente seguir no fluxo e sacar os sentidos de acordo com o contexto, ou dar um google para saciar a curiosidade. No entanto, o simples fato de ser jogada no meio de uma conversa sacana, como quem escuta uma fofoca que não deveria, já é algo que pega.
Quem é essa mulher que ironiza os clientes com cueca mal lavada, que procuram travestis para realizar as fantasias mais bizarras, que fala da literatura brasileira & seus autores no armário? Como ela foi fazer a vida Europa? Entre idas e vindas da memória, um assunto emendado no outro, temos histórias de infância, dicas de procedimentos estéticos e reflexões sobre a passagem do tempo e necessidade de aposentar (como não não identificar, né, gente).
Tal qual Riobaldo, que conta sua história a um interlocutor desconhecido, acompanhamos um relato endereçado a uma travesti mais jovem. Ler Neca é quase praticar um espécie de voyerismo, seja pelas histórias da profissional do sexo ou por acompanhar uma conversa que não aconteceria com pessoas cis. No entanto, há também um experiência deliciosa com a linguagem, pois além do cuidado que Amara teve de se aproximar da oralidade, do ritmo da contação de causos, o uso pajubá serve para preservar a lógica do segredo e reforça a irreverência do romance.
Nada é entregue aos leitores de mão beijada. É preciso criar vocabulário, perceber os próprio preconceito e a ignorância em relação a modos de vida e cultura que nós, que nos encaixamos de alguma forma em alguns padrões, desconhecemos. Neca me fez dar boas risadas e se algum dia eu conseguir parar para ouvir um audiolivro, será esse, com leitura da própria Amara, um luxo.
Demorei um pouco para chegar ao romance estreia de Jeovanna Vieira porque sabia que a história envolvia um relacionamento abusivo, logo, precisava da cabeça minimamente boa para encarar essa leitura sem desalinhar meus chacras. Contudo, há muito mais no livro, como a construção de personagens cativantes, que não apenas vivem uma amizade firme, entre suas diferentes personalidades e escolhas de vida, mas a prosa de Jeovanna mistura gírias, letras de samba, provérbios e aquela conversa descontraída entre amigas falando merda enquanto tomam cerveja, que me fez pensar nas minhas amigas em vários momentos.
Às vezes parece óbvio que escritores deveriam ter um bom ouvido, no entanto, percebemos como há quem se afine com certas frequências que nos tocam especialmente. Além de ter parado para rir de expressões como “o golpe da piroca é real”, fiquei abismada por não ter ouvido isso numa mesa de bar antes de me deparar com essa sabedoria num livro.
Fiquei feliz de encontrar um romance contemporâneo com uma protagonista negra, de classe média, bem sucedida, com uma família acolhedora que tem suas dificuldades, mas honra toda uma trajetória de gerações de mulheres que ralaram muito para que suas filhas e netas tivessem uma vida melhor. É o tipo de representação que traz um certo frescor entre várias histórias de mulheres negras que temos lido recentemente.
Mas é lógico que, se a Virginia não tivesse um ponto fraco, não haveria conflito, nem romance. Então o calcanhar de Aquiles da protagonista é a busca por um estado de paixão que a deixa vulnerável a um relação que envolve uma montanha russa emocional desgastante, muito sexo intenso para fazer as pazes depois de inúmeras brigas e toda a ginástica mental que vítimas de abuso fazem para compreender as inseguranças e motivações do outro, e que muitas vezes dificultam a saída dos ciclos de violência psicológica.
Um do méritos de Virginia mordida é mostrar como mesmo uma mulher bem resolvida em vários aspectos da vida pode vir a sofrer abuso numa relação afetiva. Mesmo com uma família e amigas amorosas, a compreensão racional de que a situação é insustentável, ainda assim Virginia precisa atravessar o próprio processo, cheio de enfrentamentos, recaídas, autoenganos, até chegar ao seu limite.
O fato de ela ser uma personagem complexa, que debocha do companheiro abusador, depois se sente culpada e cede um pouco mais nas disputas entre os dois, me parece uma construção muito interessante, pois ninguém é só vítima. E talvez a dificuldade de se reconhecer como vítima em algumas relações faça com que várias mulheres demorem a reconhecer que precisam de ajuda e que esse tipo de episódio não define quem elas são como parceiras, nem os rumos de sua vida amorosa dali pra frente. ãs vezes é mais fácil perdoar quem te agride do que a si mesma por não ter caído fora antes.
Virginia mordida é um romance ágil, que instiga a curiosidade, que traz referências deliciosas ao samba e ao pagode, não surpreenderia nem um pouco se fosse adaptado pro audiovisual. Uma leitura que angustia e sustenta a curiosidade de chegar ao desfecho, ainda que precisemos atravessar trechos duros e os altos e baixos com aquela tensão de “vai dar meeeerda” ao virar as páginas.
Bom, pessoa, por enquanto é isso. Espero voltar em breve para falar de outras leituras, ou dar notícias sobre o futuro dessa cartinha noutras paragens. Se você estiver no pique fazer oficina, as inscrições estão abertas até 1 de abril. Não se acanhe, bora escrever.
beijos e até a próxima,
Stephie
Tava com saudade das suas cartas ❤️ tbm amei Neca e a Virginia tá na minha lista
falei das mesmas ressalvas com o substack em um texto recente. mas, voilà, cá estamos, por agora. beijos, querida!