e aí, pessoa, como você está?
É possível que você receba essa carta porque migrei os destinatários da antiga versão da newsletter para outro serviço ou tenha chegado recentemente por conta das redes sociais. De qualquer maneira, seja bem-vinda.
Na última cartinha via tinyletter, fiquei de falar mais do meu novo livro, Made of Dream, publicado nos Estados Unidos em dezembro. É estranho falar de um livro que nem vi ainda, mas enfim falar do processo me ajuda a entender um pouco essa travessia.
Made of Dream é um livreto bilíngue inglês-português com cinco poemas. O projeto que surgiu a partir de uma chamada da editora para novos autores. Remexi meus arquivos, encontrei poemas relacionado a sonhos de que gosto e mandei mensagem para minha amiga Livia Lima [uma baita editora e tradutora que verteu pro português o maravilhoso Aprender de coração lançado recentemente pelo Clube do Livro do Design].
De cara, a Li achou que eu estava doida, com tantas outras pessoas que poderia convidar para essa parceria, mas depois embarcou nessa comigo na base de dois argumentos: 1. te chamei porque confio em você; 2. vamos fazer isso pra nos divertir, o pior que pode acontecer é nada. Não é zoeira quando digo que Made of Dream não existiria se não fosse a amizade. Eu não só não me traduziria sozinha, como teria desistido se não tivesse mais alguém comigo nessa aventura.
Nos últimos anos, alguns dos movimentos mais interessantes que fiz na vida foi na lógica do “não tenho nada a perder mesmo”. Acredito tanto que o pior que pode acontecer é a estagnação, o tédio, a imobilidade, que a frase “o pior que pode acontecer é nada” está nos versos de um dos poemas do livro. Às vezes até acho que tenho o que perder, mas repito esse lema para espantar a autocobrança e simplesmente fazer.
Quando veio a notícia de que a editora tinha aceito o projeto, comemorei, chorei, mandei mensagem pra Li. Eis a mocinha do Irajá publicada em Nova York. [Rapidamente soou a voz da minha avó na minha cabeça com seu meio sorriso escorpianíssimo “isso não é pouca merda não, hein”.]
O lance é que eu não fazia a menor ideia de como seria ter que explicar em outra língua, para pessoas que não dominam o português fluentemente, coisas muito importantes para mim, tipo: como penso a poesia, o que quero com aquele conjunto específico de poemas. O que eu queria que cada um daqueles poemas fizesse em português, pois isso definiria as escolhas de palavras da versão em inglês.
Veja bem, sou uma pessoa que detesto dar explicações e satisfações. Eu quase larguei tudo pra lá quando caiu a ficha do quanto eu teria que “me fazer entender”.
E de repente lá estava eu numa reunião no zoom tentando explicar que gosto de sujeitos ocultos e ambiguidades porque se o mundo tem muitas ideias sobre a experiência negra, quero que a linguagem desestabilize essas imagens/ideias. Acho que foi aí que as minhas editoras se ligaram que embora meus poemas não fossem sobre temas raciais [afinal, que porra é essa?], as vozes neles eram sempre de mulheres negras.
Por que em Uma mulher acorda não se sabe direito quem fala no poema? É a mulher no poema que fala de si de forma distanciada? O poema é narrado por um ser onisciente que sabe o que a mulher pensa e responde nos versos? Era pra ser assim mesmo?
E aí fiquei furiosa comigo mesma pois me coloquei nessa situação em que:
escrevi os poemas;
traduzi junto com a minha amiga num vai e vem de versões, áudios no zap e uma tarde no google meet lendo os poemas várias vezes pra acertar o som;
precisei criar um discurso coerente sobre algo que escrevi mas que não quero racionalizar.
É isso: a gente pensa para escrever o poema, mas a gente não precisa ter controle sobre as leituras possíveis ou saber tudo sobre ele.
Quando contei para alguns amigos que estava traduzindo meus poemas, as pessoas em sua gentileza me diziam “mas o bom é que você sabe o que quer dizer com seus poemas, ninguém melhor do você para fazer isso”. Ao que eu respondia: não, gente, a autotradução é uma coisa do demônio.
Para mim, era frustrante demais perceber que não conseguia levar para o inglês algumas ironias, duplos sentidos, nem mesmo o certo tom de deboche que consigo expressar na minha leitura em voz alta. Em inglês eu soava muito racional, meio sem gingado. E tenho senso humor, embora nem sempre as pessoas peguem isso que escrevo.
Era como se, ao viajar para uma outra língua, precisasse largar metade da minha caixa de ferramentas de poeta na fronteira. Se vira aí sem a impessoalidade, sem as vogais melodiosas da tua língua materna. Faz esse negócio cantar só com um canivete meio sem corte e um terço de rolo de arame.
Imagina só: em inglês não existe equivalente para baque. E aí a gente teve que escolher entre uma lista de verbos que tipo de abalo, tombo ou emoção a gente queria transmitir para o leitor, porque não podia ser tudo ao mesmo tempo como é no nosso português. Traduzir é lidar com frustração e limites o tempo todo [e sim, gosto, estou ciente & pretendo continuar]
No fim, fiquei satisfeita na base do “esse livro precisa sair, esse é o melhor que tem para hoje, fica o aprendizado”. Contudo, depois na análise articulei o tamanho desse desafio: era a minha primeira tradução profissional ao inglês, dos meus próprios poemas. Ou seja, não é pouca merda mesmo. Então me permiti ficar feliz e orgulhosa e chorar quando chegaram as primeiras fotos do livro impresso, das pessoas recebendo os exemplares. Tomara que eu ainda chore muito de alegria com esse livro, depois do nervosismo de me explicar tanto.
No fim, todo esse processo me fez entender como a amizade e a tradução se aproximam como formas de generosidade. Há uma atenção delicada em ser amiga, ouvir de verdade, dispor de tempo e energia para outra pessoa. Traduzir é ler e reler, fazer perguntas, ouvir [o autor lendo no idioma original para sentir o ritmo, fazer uma leitura em voz alta na língua de chegada e perceber como soa] e dispor não só do tempo, mas da sensibilidade do corpo de quem traduz.
As pessoas [geralmente as que não traduzem] falam muito da tradução em termos de reprodução [ah, a fidelidade] ou criação [a criatividade, a liberdade, especialmente para tradutores homens] e me parece faltar conversas sobre o tradutor como um grande leitor, alguém com curiosidade em relação à vida, com ouvido atento a como as pessoas falam, que se interesse pelas tensões entre o oral e o escrito. Quando se traduz, muitas das nossas experiências de vida são material para tomar decisões, a nossa ignorância fica evidente diante de palavras, de lugares, conceitos desconhecidos e só pesquisando para resolver.
Outro dia, arrumando a estante, notei que depois de ler O oráculo da noite, do Sidarta Ribeiro, fui juntando sem perceber uma bibliografia sobre sonhos. Eu tinha me apaixonado por A curva do sonho, da Ursula K. Le Guin, antes mesmo de ler o Sidarta. Fui atrás de O desejo dos outros, da Hanna Limulja, voltei a ler Maria Gabriela Llansol, comecei a ler psicanalistas junguianos comentando sonhos alheios.
Aí quando precisei escrever a nota sobre a tradução de Made of Dream [que na língua brasileira é Feito um sonho] chegou a hora de assumir que o sonho me interessa enquanto tema. Afinal, quem se pergunta com o que sonha uma mulher negra? Com o que sonha a mulher que não quer corresponder a imagem de uma boa mulher? Como a gente escapa dessa superficialidade lamentável que o Davi Kopenawa chama de “sonhar apenas com objetos, dormir como um machado largado no chão”?
A reta final de 2023 me fez me comprometer com a minha poesia outra vez. Fiz uma zine para Flip, chamada Alguma urgência [se você quiser comprar, responda ao e-mail da cartinha pois devo fazer uma nova leva em breve] e me lembrei de como gosto do processo: editar os poemas, fazer colagem, dobrar, grampear. Ver um monte de palavras que surgiram como rabiscos ganharem materialidade. Sei que Made of Dream e Alguma urgência são movimentos dentro de uma transição enquanto não sinto que cheguei a um novo projeto de livro. Sou eu agindo como se não tivesse nada a perder.
E para me estimular a escrever e só depois descobrir o que acontece, resolvi montar uma oficina de escrita a partir de fotos, que vai rolar depois do carnaval. No link tem o valor, os detalhes da dinâmica e estou colhendo os e-mails de quem tem interesse. Também está rolando uma enquete no forms para saber se o melhor dia é quarta ou quinta. Em breve mandarei um e-mail para todo que se cadastrou para organizar a turma, talvez uma lista de quem não vai poder entre 22 de fevereiro e 14 março, mas que curtiu a ideia e poderá mais pra frente.
Ah, e agora vou tentar deixar algumas anotações sobre minhas leituras nas notas do substack, porque estou tentando desapegar do twitter.
Espero que você tenha 2024 leve e alegre, na medida do possível, porque nem sempre a gente precisa se desafiar, né. A vida se encarrega.
beijos e até a próxima,
Stephie
Que projeto lindo e que massa ter ver retomando a cartinha. Sobre a oficina, eu adorei mas vou ficar no grupo que só conseguiria mais pra frente. Parece que o ano só começa oficialmente em março, apesar do trabalho. Um 2024 cheio de movimentações para nós, independentemente de para onde esses movimentos nos levem. Confiar o futuro ao futuro, como disse a Clarice. Salve salve :)
Nossa, se já é difícil "defender" nossas ideias em relação ao nosso texto em português, não consigo nem imaginar o que foi fazer isso em outro idioma. Mas feliz que deu certo!
E que bom ter suas cartinhas de volta! 🥰