E aí, pessoa, tudo bem?
Não me surpreenderia se você achou que eu não mandaria mais carta nenhuma. Em algum momento, alinhavei um rascunho sobre as leituras de Vivian Gornick e Deborah Levy entre o fim do verão e o início do outono. No entanto, embora sinta saudades da newsletter, algo muito delicado definia o tom dos meus dias naquele momento: minha cachorra estava morrendo.
Eu queria escrever sobre autoras que revisitavam suas vidas em textos autobiográficos elaborando o que significa a maturidade, as mudanças de perspectiva trazidas pela noção da passagem do tempo. Confluências entre o autoconhecimento, a consciência da própria trajetória e alcançar um desapego em relação a “quem sou eu” até um determinado momento da vida, até para se permitir ser outras coisas.
De certa forma, me aproximei dessas autoras numa tentativa de entrar no clima da minha passagem aos 40 anos. No entanto, não fazia a menor ideia do que seriam os últimos dias de vida da Elle, me despedir dela e entender como a minha vida se estruturou ao longo dos últimos anos em torno da escolha de conviver com um bicho.
É estranho tentar explicar como é bizarro não ter mais quem me chame para brincar todos os dias. Mas essa carta não é para falar do luto. Toco nesse assunto porque nos últimos seis meses, entre a exaustão, a minha desconexão com o ritmo do mundo, todo o carinho e paciência que recebi das amizades, voltei a escrever. E tava precisando muito disso.
Na real, estou sempre escrevendo, mas nem tudo presta. “Voltar a escrever”, de fato, significa: enxerguei um projeto que acho digno de publicar. E assim surgiu a plaquete um nome não é uma chave que reúne 12 poemas, 10 deles em papel pela primeira vez.
Então, essa carta, na verdade é um convite, um aviso. Para a galera do Rio de Janeiro, no dia 23 de novembro, sábado, das 17 h às 22h, vai rolar uma festa no Reduto, em Botafogo, com o lançamento de um nome não é uma chave e outras plaquetes da segunda temporada Aqui + Agora, publicada pela Mapalab. Estarei lá para celebrar, ler poemas, fazer dedicatórias e tomar uns drinks. Quem puder, apareça.
Vou tentar agitar um lançamento em São Paulo e quem não tem ddd 21 pode encomendar a sua pelo site da editora. Dados os informes, voltemos realmente importa, o processo.
Os poemas de um nome não é uma chave começaram a ser escritos em 2022. Depois de escrever sobre uma releitura de Quarto de despejo para a Quatro Cinco Um me veio uma ideia de escrever um poema para Carolina Maria de Jesus. Foram várias tentativas e como ainda não fiquei satisfeita, Carolina I não foi parar na plaquete. Desconfio que esse poema só esteja pronto quando eu terminar um poema para Clarice Lispector, vamos ver.
Um dia, tomando chopp com uma amiga, falei dessa ideia de cometer poemas para autoras, uma mistura de experiências de leitura, homenagens, contaminações, decepções. A reação foi “já começa a anotar uma lista” e aos poucos vieram poemas para Stella do Patrocínio, Virginia Woolf, Audre Lorde, Dionne Brand, bell hooks, Patti Smith, Ana Cristina Cesar. Escrever poemas para as minhas referências me fez voltar a poemas que me marcaram, reler livros inteiros, rever minhas traduções, voltar a álbuns que não escutava há anos. Sem saber, era parte do ritual que eu precisava para encerrar a década dos meus 30 e quarentar.
Remexi a estante, coloquei alguns livros antigos à vista. Encontrei marcações de leituras feitas há anos, fiquei chocada de não ter anotado nada em algumas edições e comecei a marcá-las agora, antes tarde do que nunca. É curioso observar como nos lembramos de passagens de um jeito totalmente errados quando se procura uma epígrafe. O que a gente guarda de um livro também é o que inventamos a partir dele.
É bonito perceber como alguns livros despertam memórias físicas, o cheiro do papel, a lembrança do momento da leitura, o que eu ouvia quando lia/trabalhava numa tradução.
Inicialmente, achei que esses poemas seriam um percurso afetivo, a possibilidade de observar como a voz pode mudar dependendo da interlocutora. Queria entender como me afastar conscientemente dos ritmos de Talvez precisemos de um nome para isso embora saiba que várias das minhas obsessões ressurgem. Alguns amigos inclusive já brincaram com o fato de que os títulos ressoam a continuidade de um pensamento sobre o que é ou não nomeado. Ou a importância de dar nome às coisas.
No entanto, isso é o que as pessoas me dizem antes mesmo de ler. Entre as experiência sem nome do primeiro livro e dez poemas cujos títulos são nomes de mulheres há pontos de contato, sim. O modo como o corpo é evocado a partir de suas partes. As imagens que não vejo por aí e quero trazer para os poemas, afinal, quando dizemos “uma leitora” quais as características sua imaginação mobiliza? O quanto ainda pensamos numa leitura silenciosa, num imaginário burguês do século 19 e não em moças lendo de pé no transporte público? Como a persistência um cenário “ideal” para a leitura, de calma e dedicação [que tem seu lugar], afasta muita gente só descobrir um prazer, uma possibilidade de encantamento?
Nos últimos anos me perguntaram, mais de uma vez, se a demora para publicar novamente tem a ver com um excesso de cobrança da minha parte depois d e um prêmio, da recepção do livro. E recentemente entendi que na verdade, mais que uma preocupação com “o que escrever”, eu carregava uma angústia em relação a Talvez precisemos de um nome para isso não só porque a pandemia interrompeu meu planos após o lançamento, mas porque inconscientemente tentava voltar a um estado de alegria, curiosidade, insegurança dos meses em que escrevi o poema.
Havia o desejo de recuperar a empolgação, um estado obsessivo de escrita, reescrita. De reencontrar a confiança de que os poemas estavam funcionando. Contudo, não tinha me ocorrido que não tinha parâmetros para entender o que vinha fazendo porque estava imersa numa sucessão de lutos, pessoais e coletivos. Como saber o que eu queria que os poemas fizessem, se ainda estava olhando pra trás?
Passar os cadernos a limpo, reler, editar, organizar a ordem dos poemas, foi olhar para o passado, mas numa lógica de sankofa: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”. Enquanto a gente é estimulada o tempo todo a seguir em frente, a ter um próximo projeto, a ignorar as próprias dores e continuar fazendo, tive que desacelerar porque nessa loucura o que ficou atrás fui eu. Não foi bonito perceber andei trabalhando demais, atendendo a demandas e expectativas dos outros, que abri mão de estar ao lado dos meus amigos porque tinha perdido o limite entre o cansaço e a tristeza durante os dias do vale da sombra da morte. No entanto, isso tem se resolvido com paciência e tentativa e erro. O mais difícil já passou.
Montar essa plaquete foi um movimento de entender em que medida não tenho para onde voltar. Há um mostro, há o contrabando, as referências óbvias e as cifradas, interrupções e silêncios. Lá está a poesia como forma de falar com vivos e mortos, fazer perguntas. É entender o que anima a escrita, pois me move, mas ressurge de outras formas.
Como bem observou uma amiga há uma contradição curiosa ao dizer que “um nome não é uma chave”, pois isso depende de qual nome e para quem. Iniciados têm nomes secretos. Mas o que as pessoas imaginam saber sobre uma mulher só porque conhecem seu nome? Como as pessoas entendem o título de um poema como uma pista, uma chave de leitura? [e é por isso que tenho muita dificuldade em dar títulos, hahaha]
Quando aceitei o convite da Ana Paula, minha editora querida, não fazia ideia de como trabalhar nesses poemas ia me tirar de um sentimento de dívida comigo mesma para a alegria da sensação de possibilidade. Ao retomar o que ficou atrás, entendi que há planos antigos que não fazem mais sentido, que há coisas em que pensei em escrever pensando em demandas do mercado, desconsiderando meus desejos. Descobri que não quero sustentar velhas vontades que pareciam boas, mas não me deixam mais feliz. Fui lembrada de que a escrita me traz um entusiasmo muito particular, um estado alterado de consciência no qual não se pode ficar, mas que, a cada episódio aprendo algo sobre mim e o tipo de experiência que acredito que um poema seja capaz de provocar.
E me despeço deixando duas influências dessa plaquete. Uma tradução de um poema da Carol Ann Duffy, de um livro chamado The world’s wife com poemas para figuras mitológicas, personagens de contos de fada ou livros clássicos. Escolhi Eurídice porque foi um poema que me fez rir de nervoso por brincar com essa figura da “esposa do artista” e com a ideia de que as mulheres não têm sossego nem depois de mortas (cês leram A invenção de Morel? já repararam na misoginia dos obituários de mulheres célebres nos jornais?), mas quero traduzir outros poemas desse livro maravilhoso para espalhar por aí.
A outra é o álbum Legacy! Legacy! da Jamila Woods, um disco que me foi indicado por um leitor da cartinha há muito tempo, inclusive. Um disco que amo muito porque traça uma genealogia de influências intelectuais e afetivas de poetas, romancistas, cantores, artistas negros. Talvez precisemos de um nome para isso tem um diálogo com A seat at the table, da Solange, e um nome não é uma chave vai juntinho de Legacy! Legacy!
Bom, pessoa, é isso. Preciso admitir que acho o substack meio irritante com suas notificações e estímulos para gente se profissionalizar e ter assinantes e construir comunidades, mas com o fim do twitter (para mim, de verdade, pois desativei a conta, migrei para o bluesky onde falo muito menos) estou com saudades de um canto para falar das minhas leituras de um jeito descompromissado. O instagram é bom pra registrar o que chega, mas não as ideias. Então, depois de meter esse perdido em 23k seguidores sem olhar pra trás para não virar estátua de sal, talvez volte a brincar mais por aqui para falar de livros, de preferência dos outros. Mas se vocês lerem os meus, por favor, me contem como bateu por aí. Uma das razões de publicar é acreditar na capacidade de um livro despertar conversas. Então como diria Sérgio Sampaio, cante, converse comigo.
beijos e até a próxima,
Stephie
Esse era um texto que eu precisava ler. Muito obrigada (e muito sucesso para o novo livro!)
"Na real, estou sempre escrevendo, mas nem tudo presta." nossa representou <3 e ja to doida pra ler as proximas coisas!